Relação com a saúde, área de grande apelo na população, tem reflexos no capital político (Foto: Shutterstock)
A relevância das políticas públicas na Saúde diante da pandemia da Covid-19 e a polêmicas recentes como o caso de fura-filas da vacinação têm jogado luz sobre as relações entre política e medicina e sobre a forma como os profissionais se aproximam do eleitorado por conta da atuação na área.
Neste ano, prefeitos e vice-prefeitos no Ceará precisaram ir a público comprovar que, além do cargo político, continuam exercendo a profissão de médico, a qual, muitas vezes, é a base do capital político formado junto à rotina da população.
A relação entre as áreas é histórica e permeia a atuação de nomes importantes da política no Estado. Em Juazeiro do Norte, na Região do Cariri, são eleitos prefeitos médicos desde a redemocratização, a exceção aconteceu em 2020, com a eleição do policial civil, Glêdson Bezerra (Podemos). Já em Fortaleza, foi eleito, no ano passado, o segundo médico consecutivo para a Prefeitura da Capital, José Sarto (PDT).
De acordo com dados da Associação dos Municípios do Estado do Ceará (Aprece) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o Ceará tem 16 prefeitos e prefeitas médicas entre os 184 gestores públicos eleitos em 2020. Atualmente, 20 vice-prefeitos profissionais da área também exercem cargo no estado.
“Numa crise sanitária, abre-se uma janela de oportunidade muito maior de que esses médicos atuem como gestores públicos. Há um tempo, a centralidade era a segurança pública, e agora o tema é a saúde pública", pontua o cientista político Raulino Pessoa, professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece).
Nas eleições de 2018, oito deputados estaduais médicos foram eleitos, e um deputado federal formado em medicina garantiu assento na Câmara Federal.
Além deles, há um número considerável de profissionais da medicina que exercem liderança política em diversos municípios cearenses e, no momento, estão sem mandato eletivo.
VACINAÇÃO CONTRA A COVID
Desde o início da campanha de imunização contra a Covid-19, houve tensionamento entre as autoridades judiciais e gestores públicos que também são médicos no Ceará após serem questionados por serem priorizados na vacinação.
Diante da pressão pública, muitos ressaltaram atuar na linha de frente no combate ao vírus e também justificaram servirem de exemplo para a população.
No Eusébio, o prefeito Dr. Acilon Gonçalves (PL) foi a primeira pessoa a ser vacinada. Nas redes sociais, ele comemorou. “Tive a honra de ser o primeiro eusebiense a ser vacinado”, disse o prefeito, que também é médico ginecologista.
Com frequência, as redes sociais do gestor mostram a atuação dele como médico na rede pública municipal. "Mesmo com todas as responsabilidades de um gestor municipal, nunca deixarei de lado a missão de cuidar das pessoas. Ser médico me proporciona essa tarefa", diz uma das postagens.
Filho de Acilon, o prefeito de Aquiraz, Bruno Gonçalves (PL), também foi um dos primeiros na cidade a receber o imunizante. Ele é médico obstetra e costuma publicar imagens de partos que realiza no município.
Ao publicar o registro do momento da vacinação nas redes, Bruno chegou a ser questionado por seguidores se deveria receber a vacinação já no primeiro lote.
"Faço partos quase todos os dias da semana no Hospital Municipal de Aquiraz. Por isso recebi a vacina. E fiz isso também para incentivar as pessoas a se vacinarem”, justificou.
Em Crateús, o vice-prefeito Francisco José Bezerra, 66, foi o escolhido para ser o primeiro cidadão do município a receber a vacina Coronavac. O gestor trabalhou na linha de frente durante a pandemia no município. Ele é funcionário do Hospital Municipal há 40 anos.
Já Giovanni Sampaio (PSD), vice-prefeito de Juazeiro do Norte, ao publicar a foto sendo um dos primeiros a se vacinar na cidade, escreveu: “Tomei a vacina do Covid 19, como médico e de acordo com a regulamentação do Ministério da Saúde. Espero que, o mais rápido possível, chegue ao povo brasileiro”.
Ainda assim, está em curso, na Câmara Municipal de Juazeiro, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a imunização do vice-prefeito.
O prefeito de Guaraciaba do Norte, Adail Machado (MDB) é alvo de investigação pelo Ministério Público Federal (MPF) que afirmou ter comprovado que, embora seja médico, o prefeito não atua como profissional de saúde da linha frente do combate à Covid-19.
Adail Machado atua de forma filantrópica e refuta as afirmações do MPF. "Fiz uso da vacina no primeiro lote por achar que me enquadrava no público alvo, já que fora destinada aos profissionais da linha de combate. Faço aqui humildemente uma retratação pública e reitero meu compromisso com a legalidade", disse em entrevista ao PontoPoder.
Ao todo, 44 municípios têm gestores públicos na mira do Ministério Público por suspeita de furarem a fila da vacina, desde servidores e secretários a prefeitos e vices.
GARGALOS NA SAÚDE
As deficiências no atendimento de saúde à população são históricas. Profissionais da área que atuam principalmente junto aos grupos mais carentes costumam ter êxito ao transformarem o apoio social em capital eleitoral.
Raulino Pessoa, que faz pesquisas de campo para entender como se estabelece a relação entre as áreas, ressalta o vínculo que se forma entre a figura do médico (ou da médica) e um paciente.
“Quando a gente adoece, muitas vezes a gente fica mais carente, mais necessitado. Se vem alguém, um médico com status elevado, sendo gentil e atendendo você bem, você fica eternamente grato e isso gera vínculo”, afirma.
Esse acúmulo de capital eleitoral acaba tendo reflexos na ocupação dos cargos no Executivo e Legislativo. A cientista política e professora da Universidade Estadual do Ceará, Monalisa Torres, ressalta que, desde os tempos da política dos coronéis, o atendimento de saúde oferecido à população partia, muitas vezes, da iniciativa dos líderes políticos de levar médicos às regiões carentes.
A prática ainda é observada em cidade com carência de estrutura pública de saúde. "Hoje políticos no interior levam médicos nas suas cidades para conquistar uma base eleitoral. Serviço de saúde é essencial e não é proibido”, ressalta Torres.
Os pesquisadores observam ainda que a carreira na política costuma começar perto das bases, com pleito de cargos de vereador que, com o tempo, podem evoluir para o apoio a cargos majoritários.
O CASO EMBLEMÁTICO DE JUAZEIRO DO NORTE
Terceira maior cidade do Ceará e berço político de figuras políticas importante ao longo das décadas, Juazeiro do Norte manteve médicos como prefeito desde a redemocratização. A tradição foi quebrada apenas em 2020, com a eleição do policial civil Glêdson Bezerra (Podemos).
Antes dele, ao menos desde 1983, apenas profissionais de medicina exerceram o comando do Executivo da maior cidade do Cariri.
O primeiro deles foi Manoel Salviano Sobrinho, ainda pelo extinto PDS. O médico e empresário também viria a ser eleito deputado estadual e federal. O sucessor foi outro médico, Carlos Cruz que assumiu a Prefeitura em 1989, pelo então PMDB.
Na sequência, viriam ainda Mauro Sampaio (PDT) em 1997; Raimundo Macedo, o “Raimundão” (PSDB), no ano de 2005; Manoel Santana (PT) em 2009 e Arnon Bezerra (PTB) em 2017.
Em comum entre todos os ex-prefeitos de Juazeiro, está, além do fato de serem médicos, o de terem também exercido a função de deputado.
Tradicional político da região do Cariri e natural de Aurora, Raimundão foi um dos que apostou nos atendimentos gratuitos com pacientes ao longo da carreira política. As consultas gratuitas chegam a ocorrer na própria residência do ex-prefeito
SAÚDE EM DESTAQUE NAS ELEIÇÕES
A cientista política e professora da Universidade Estadual do Ceará, Monalisa Torres, lembra que a maioria das pesquisas de intenção de voto em período pré-eleitoral aponta a Saúde como o principal problemas nos municípios grandes ou pequenos.
A pesquisa Ibope para a Prefeitura de Fortaleza nas Eleições 2020, divulgada em outubro pela TV Verdes Mares, mostrou a Saúde como o maior problema da Capital, conforme avaliaram 61% dos eleitores ouvidos.
Desde a redemocratização, a capital, Fortaleza, tem à frente o terceiro médico como gestor, José Sarto (PDT), sucessor do também médico Roberto Cláudio (PDT). Além deles, Fortaleza elegeu também Juraci Magalhães, nos anos 1990.
"A Saúde é prioridade máxima para o eleitor, mas esse não é o único componente considerado em uma cidade como Fortaleza. Os políticos sabem disso e fazem o cálculo para mobilizar o máximo de capital político: se o problema é a Saúde, nada mais importante do que ter um médico (na prefeitura)”, ressalta a cientista política e professora da Universidade Estadual do Ceará, Monalisa Torres.